O apanhador de desperdícios
Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.
BARROS, Manoel de. O
apanhador de desperdícios. In. PINTO, Manuel da Costa.
Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006. p. 73-74. É próprio da poesia de Manoel de Barros valorizar seres e coisas considerados, em geral, de menor importância no mundo moderno. No poema de Manoel de Barros, essa valorização é expressa por meio da linguagem simples, porém expressiva no uso de metáforas para definir o fazer poético do eu-lírico poeta.
Comentário: A linguagem da
poesia jamais é denotativa ou referencial, pois a denotação e a
referencialidade relacionam-se, respectivamente, ao sentido real das palavras
e à representação do mundo com ênfase no próprio mundo, e não na visão que o
artista tem dele. A poesia fala por imagens, que representam uma expressão
nova, e não por palavras “fatigadas de informar”; nela prevalece a
conotação. Adjetivos como rebuscada e hiperbólica não se aplicam a
Manoel de Barros, que é um poeta direto, econômico, próximo da natureza.
A linguagem de Manoel de Barros é simples, expressiva, e apresenta metáforas para definir o fazer poético. Exemplo: “Dou mais respeito/ às (palavras) que vivem de barriga no chão/ tipo água pedra sapo.” |
Poema VII de “Uma didática da invenção”
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança
diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para
cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.
(BARROS, Manoel. O livro das Ignorãças. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1994. p. 17)
http://www.filologia.org.br/xv_cnlf/tomo_3/178.pdf
Sabrina
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